A devoção ao Sagrado Coração de Jesus e a Encíclica Haurietes Aquas de Pio II


Em 15 de maio de 2006 o papa Bento XVI enviou ao superior-geral da Companhia de Jesus uma carta por ocasião dos cinqüenta anos da Encíclica Haurietis Aquas. Pio XII, por sua vez, havia escrito essa encíclica para celebrar e recordar a todos o primeiro centenário da extensão a toda a Igreja da festa do Sagrado Coração de Jesus

Dessa forma, aproveitando a concatenação dos aniversários, o Papa quis religar-se ao fio ininterrupto dessa devoção que há séculos acompanha e conforta tantos cristãos em seu caminho. Nesta ocasião, pedimos algumas reflexões ao cardeal Martini, e ele nos enviou o texto que segue

Lembro-me muito bem do tempo em que saiu a encíclica Haurietis Aquas in Gaudio. Eu era então estudante de Sagrada Escritura e membro da comunidade do Pontifício Instituto Bíblico, onde era professor o ilustre biblista padre Agostino Bea, depois criado cardeal pelo papa João XXIII. Padre Bea era um estreito colaborador do papa Pio XII, e na comunidade se dizia, penso que com boas razões, que ele havia contribuído para preparar esse documento. Certamente impressionava a orientação bíblica de todo o texto, a partir do título, que é uma citação do livro de Isaías (12,3). Por isso, a encíclica (que trazia a data de 15 de maio de 1956) foi lida com muita atenção pela comunidade do Instituto Bíblico, que apreciava em particular o seu embasamento nos textos da Escritura. 


No passado, essa devoção, que de per si tem uma longa história na Igreja, se desenvolveu entre o povo a partir sobretudo das chamadas “revelações” de tipo particular, como a revelação a Santa Margarida Maria, no século XVII. A percepção de como nessa devoção tradicional estava sintetizada concretamente a mensagem bíblica do amor de Deus era algo que nos reaproximava dela, uma devoção que no passado recente havia sido muito cara sobretudo à Companhia de Jesus, em particular em sua luta contra o rigorismo jansenista. 

O fato de o papa Bento ter desejado escrever uma carta para lembrar justamente essa encíclica ao superior-geral da Companhia de Jesus se deve certamente também a que os jesuítas se consideravam particularmente responsáveis pela difusão dessa devoção na Igreja. Isso também era afirmado por Santa Margarida Maria, segundo a qual esse encargo fora desejado pelo próprio Senhor, que se manifestava a ela. 

Foi assim que a devoção ao Sagrado Coração me foi apresentada no noviciado dos jesuítas, na década de 1940. Isto me levava a refletir sobre a maneira como era possível viver uma devoção como essa e, ao mesmo tempo, deixar-se inspirar na vida espiritual pela riqueza e pela maravilhosa variedade da palavra de Deus contida nas Escrituras. 


Bento XVI com o cardeal Carlo Maria Martini

E essa pergunta se impunha com ainda maior insistência, na medida em que o meu caminho cristão pessoal também se deparou de certa forma desde a infância com essa devoção. Ela me havia sido infundida por minha mãe, com a prática das primeiras sextas-feiras do mês. Nesse dia, minha mãe nos fazia levantar cedo para ir à missa na igreja paroquial e tomar a comunhão. A promessa era que quem se confessasse e tomasse a comunhão seguidamente nas nove primeiras sextas-feiras do mês (não era permitido pular nenhuma!) podia estar certo de obter a graça da perseverança final. Essa promessa era muito importante para minha mãe. Lembro-me de que, para nós, jovens, havia também um outro motivo para ir tão cedo à missa. De fato, na época tomávamos o café da manhã num bar com um bombrioche. 

Depois de tomar a comunhão em nove primeiras sextas-feiras seguidas, era oportuno repetir a série, para ter a certeza de obter a graça desejada. Disso veio depois também o hábito de dedicar esse dia ao Sagrado Coração de Jesus, hábito que depois, de mensal, se tornou semanal: toda sexta-feira do ano era dedicada de certa forma ao Coração de Cristo. 

Assim era na minha lembrança a devoção daquela época. Ela estava concentrada sobretudo no louvor e na entrega ao Coração de Jesus, visto um pouco em si mesmo, quase separado do resto do corpo do Senhor. Algumas imagens reproduziam de fato apenas o Coração do Senhor, coroado de espinhos e atravessado pela lança. 

Um dos méritos da encíclica Haurietis aquas era justamente ajudar a pôr todos esses elementos em seu contexto bíblico e sobretudo pôr em relevo o significado profundo dessa devoção, ou seja, o amor de Deus, que desde a eternidade ama o mundo e deu por ele o seu Filho (Jo 3, 16; cf. Rm 8,32, etc.). 

Assim, o culto do Coração de Jesus cresceu em mim com o passar do tempo. Talvez se tenha atenuado um pouco, no que diz respeito a seu símbolo específico, ou seja, o coração de Jesus. E se tornou, para mim e para muitos outros na Igreja, uma devoção pelo íntimo da pessoa de Jesus, por sua consciência profunda, sua escolha de dedicação total a nós e ao Pai. Nesse sentido, o coração é considerado biblicamente como o centro da pessoa e o lugar das suas decisões. E é assim que vejo como essa devoção nos ajuda ainda hoje a contemplar o que é essencial na vida cristã, ou seja, a caridade. Compreendo também melhor como ela está em estreita relação com a Companhia de Jesus, a qual é gerada espiritualmente pelos Exercícios de Santo Inácio de Loyola. De fato, os Exercícios são o convite a contemplar longamente Jesus nos mistérios da sua vida, morte e ressurreição, para poder conhecê-lo, amá-lo e segui-lo. 


Como foi que ocorreu e como ocorrerá ainda no futuro um desenvolvimento positivo das sementes lançadas pela encíclica no terreno da Igreja? Creio que um momento fundamental foi o Concílio Vaticano II, em sua constituição Dei Verbum. Ela exortou todo o povo de Deus a uma familiaridade orante com as Escrituras. Daí também as diversas “devoções” recebem aprofundamento e alimento sólido. Um grande mérito desse devoção foi, portanto, ter chamado a atenção para a centralidade do amor de Deus como chave da história da salvação. Mas, para perceber isso, era necessário aprender a ler as Escrituras, a interpretá-las de maneira unitária, como uma revelação do amor de Deus pela humanidade. A encíclica Haurietis aquas marcou um momento decisivo desse caminho. 


Poderíamos ver o ponto de chegada atual na encíclica do papa Bento XVI Deus caritas est. Ele escreve: 

“Na história de amor que a Bíblia nos narra, Deus vem ao nosso encontro, procura conquistar-nos - até a Última Ceia, até o Coração trespassado na cruz, até as aparições do Ressuscitado...”; e conclui dizendo: “Cresce então o abandono em Deus, e Deus torna-se a nossa alegria (cf. Sl 73[72],23-28)”. 

A questão, portanto, é ler com inteligência espiritual cada vez maior as Sagradas Escrituras, tendo desperta a atenção para o que está na raiz de toda a história da salvação, ou seja, o amor de Deus pela humanidade e o mandamento do amor ao próximo, síntese de toda a Lei e dos Profetas (cf. Mt 7,12). 

Dessa forma serão caladas também hoje as objeções que ao longo dos séculos foram feitas ao culto do Sagrado Coração, que era acusado de intimismo ou de fomentar uma postura passiva, em prejuízo ao serviço ao próximo. Pio XII lembrava e desmentia essas dificuldades, que não desapareceram nem nos nossos tempos, se Bento XVI pode escrever em sua encíclica: “Chegou o momento de reafirmar a importância da oração diante do ativismo e do secularismo que ameaça muitos cristãos empenhados no trabalho caritativo” (nº 37). 

Um outro mérito da encíclica Haurietis aquas consistia em sublinhar a importância da humanidade de Jesus. Nisso retomava as reflexões dos Padres da Igreja sobre o mistério da Encarnação, insistindo no fato de que o Coração de Jesus “devia sem dúvida pulsar de amor e de qualquer outro afeto sensível” (cf. nos 21-28). Por isso a encíclica ajuda a nos defendermos de um falso misticismo que tenderia a deixar de lado a humanidade de Cristo para aproximar-se de maneira de certa forma direta do mistério inefável de Deus. Como afirmaram não apenas os Padres da Igreja, mas também grandes santos como Santa Teresa d’Ávila e Santo Inácio de Loyola, a humanidade de Jesus continua a ser uma passagem ineliminável para compreender o mistério de Deus. Não se trata portanto de venerar apenas o Coração de Jesus como símbolo concreto do amor de Deus por nós, mas de contemplar a plenitude cósmica da figura de Cristo: “Ele é antes de tudo e tudo nele subsiste [...], pois nele aprouve a Deus fazer habitar toda a plenitude” (Cl 1,17.19). 


A devoção ao Sagrado Coração nos lembra também como Jesus doou a si mesmo “de todo o coração”, ou seja, de bom grado e com entusiasmo. Assim, nos é dito que o bem deve ser feito com alegria, pois “há mais felicidade em dar que em receber” (At 20,35) e “Deus ama a quem dá com alegria” (2Cor 9,7). Isso todavia não deriva de um simples propósito humano, mas é uma graça que o próprio Cristo nos obtém, é um dom do Espírito Santo que torna fáceis todas as coisas e nos sustenta no caminho cotidiano mesmo nas provações e nas dificuldades. 

Enfim, eu gostaria de mencionar aquilo que é chamado apostolado da oração, que nasceu no século XIX, por obra de padres jesuítas, em estreita conexão com a devoção ao Sagrado Coração. Considero que ele ponha à disposição de todos os fiéis, com a oferta cotidiana do dia em união com a oferta eucarística que Jesus faz de si, um instrumento muito simples para pôr em prática o que diz São Paulo no início da segunda parte da Carta aos Romanos, dando uma síntese prática da vida cristã: “Exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual” (Rm 12,1). 

Muitas pessoas simples podem encontrar no apostolado da oração uma ajuda para viver o cristianismo de maneira autêntica. Ele nos lembra também a importância da vida interior e da oração. Em Jerusalém se sente de maneira particular como a oração, e em particular a intercessão, constitui uma prioridade. Não naturalmente apenas a pobre oração de cada indivíduo, mas uma oração unida à intercessão de toda a Igreja, a qual, por sua vez, nada mais é que um reflexo da intercessão de Jesus por toda a humanidade. 

Essa intercessão se eleva sem interrupção por parte de Jesus ao Pai, pela paz entre os homens e pela vitória do amor sobre o ódio e a violência. Precisamos muito disso em nossos dias, sobretudo nesta “cidade da oração” e “cidade do sofrimento” que é Jerusalém. 

fonte :30dias


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